quinta-feira, 24 de julho de 2014

"Senna", de Asif Kapadia

No tempo em que a gente seguia a Fórmula 1, no tempo em que trocávamos cromos de calendário com os amigos (e que ainda conservamos numa caixa de sapatos), daqueles carros espantosos, do Niki Lauda, do Nélson Piquet, do Nigel Mansell, do Ricardo Patrese e do Michele Alboretto, havia um entre todos: Ayrton Senna da Silva, o herói do povo brasileiro.
O louco da velocidade. O rebelde do primeiro lugar. Um piloto que adorava correr à chuva e que tinha o Estoril como prova-fetiche, naquela que foi a primeira vitória da carreira, ao volante do Lotus, o carro preto do capacete amarelo. Patrocínio 'John Player Special'.
Depois, no vermelho e branco da McLaren houve a rivalidade com Alain Prost, das corridas imortais em que ganhava quem arrumasse o outro primeiro para um canto, num ódio que encheu páginas e páginas de jornais e que fez galopar a F1 para níveis hollywoodescos.
Até à curva assassina de Tamburello, no circuito de Imola, quando Senna já se queixava do seu Williams-Renault, uma pista que já tinha colhido Ratzenberger no dia anterior, e que o tornou ainda mais apreensivo. Chorou e leu a Bíblia. A partir desse dia, a inocência era perdida. Nada mais seria igual.
Costumamos lembrar-nos onde estávamos nos grandes acontecimentos. Sei que estava em Santa Cruz a ver a corrida pela televisão. Vi aquele embate brutal e arrepiante de força.
Os peritos ainda hoje falam de mistério. O fim da sorte de Senna ou o braço da suspensão que acertou no capacete. Não há mistério nenhum. Como se fosse possível alguém escapar com vida depois de se esborrachar contra uma parede a 320 kms/h.
Seja como for, era fatal. A vertigem da velocidade teria que acabar desfeita em pó e deixando em choque o mundo inteiro que, como eu, acompanhou as exéquias nos dias seguintes.
Depois disto nunca mais vi corridas de F1.

A Fox Movies lembrou-me ontem os 20 anos sobre o último capítulo de Senna.


segunda-feira, 21 de julho de 2014

"Tonight You Belong to Me"


para a Susana
(das guaridas)

I. É realmente interessante ter o privilégio de assistir ao harmonioso processo de amadurecimento de um homem, na sua longa caminhada moral. A solo, sem se poder esconder. É a segunda vez para tanta gente, diz ele. Mas para o sujeito que vive de partilha em partilha não há salvação.
Eddie Vedder vem progredindo honesta e solidamente como músico e poeta no trilho do Great American song-book, numa curiosa peregrinação de busca eterna do Eu, com os outros.
Quatro anos depois de o termos visto acompanhado da sua tribo pessoal que transformou os Pearl Jam em mais do que uma simples banda, talvez uma família de primos da América, este wrestler da sociedade apresenta-se em palco sem rede, bem ciente de que há certas coisas que os outros não podem fazer por nós. Tão longínquo já da primeira vez em Cascais onde o público gritava "Portugal ! Portugal ! Portugal !"
Aqueles que acham que já o viram uma vez e portanto... chega, ou que presumiram que vinha tocar cavaquinho e ganhar uns trocos extra, perderam perto de três horas do compromisso e entrega desmesurada do indivíduo em construção.
Cercado por uns milhares de almas e pela fogueira que foi alimentando, sempre entre a fronteira de se poder limpar ou imolar, fez-nos compreender que os saltos ao longo de todo o concerto das suas Gibson acústicas para a Fender Stratocaster - branca imaculada como a de Hendrix (a quem lembrou como Cobain, outro grande canhoto das guitarras) -, e para o inevitável ukulele, e deste para as primeiras, são o oxigénio fundamental de quem conhece bem os perigos da paixão e a vertigem de mergulhar nas profundezas de um só instrumento até ao fim, até à loucura. E, por isso, nessa comunhão total de cordas, letras e acordes, salva-se constantemente quando se transfere de uma guitarra para outra.
Eram duas da manhã quando começou, depois da chuva do princípio da noite assim como para anestesiar a ansiedade, e foi-se prolongando até ao momento - já a meio deste exorcismo pessoal - em que alguém da organização lhe veio dizer que podia tocar "as long as I will". Às 4 e meia achámos mesmo que queria ver o Sol acender-se entre nós. O sofrimento de tanta violência interior arrancada à bruta não permitiu.
Para trás ficava "Into the Wild", em prece pelo tio John, dez anos mais velho e falecido há poucos dias. "Não estava ainda preparado para me despedir. Daí esta camisola que trago vestida, a mesma que usava quando o vi pela última vez no hospital."
Ficavam também algumas canções salteadas para ukulele, além dos temas maiores do cancioneiro PJ. Mas foi com os tributos ao parceiro Neil Young, a Dylan, aos Beatles e até aos Pink Floyd, que a mensagem do peregrino se encarniçou e começou a espalhar.
Com "Masters of War" incitou aquele pequeno mundo à reflexão: "Being anti-war doesn't mean you're pro-one side. It means you're pro many things. Pro-peace, pro-understanding, pro-diplomacy, pro-Love, pro-soldiers because you don't want them to die for no reason.", altura em que pediu licença para desapertar as notas de 'Imagine', "the most powerful song I've ever heard.", colocando aquela comunidade a ranger os dentes com ele. Por Gaza e Israel, num certo tipo de oração. Peace.
Recordou depois o lado terrivelmente efémero e dramático da vida num avião de civis que é abatido noutro conflito, acabando com a vida de mais 300 inocentes, pessoas que se calhar o tinham visto dias antes em Amesterdão. Foi quando escutámos "The needle and the damage done".
Enfim, o sacrifício feito no altar deste hooligan que arranca o escalpe às vísceras justificava cada verso entoado pela multidão, de quem se despediu ao som de "Rockin' in the free World". Sagrado.
Eram quase quase 5 da manhã e só faltava uma hora para o Sol dar à luz.



II. Uma chuva, apenas inesperada para uma Organização demasiado ingénua ou optimista em relação ao tempo que se avisava para o Meco, fez atrasar o concerto que a apaixonada Cat Power tinha preparado. Também o fez abreviar.
Deixou 5, talvez 6 canções ao todo, roucas, belas e poderosas, que a voz da Cat apressadamente mandou para nos penetrarem. E a declaração de amor eterno no dueto com Vedder. "Tonight you belong to me".
E será sempre assim.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

terça-feira, 15 de julho de 2014

Regresso a Casa

[foto: Pilar Olivares, Reuters]

sábado, 12 de julho de 2014

Charlie Haden (1937 - 2014)

Em 1971 o cinzento e isolado portugalito marcelista, recebia o 1º Festival de Jazz de Cascais. Luiz Villas-Boas, o pioneiro, trazia finalmente a Portugal músicos como Miles Davis, Ornette Coleman, Thelonious Monk, Dizzie Gillespie ou Art Blakey.
Deles se conta que Miles exigiu ser quem abria o primeiro festival de Jazz no desterro deste cantinho.
Charlie Haden, jovem contrabaixista em ascensão, hesitou em vir a Lisboa, mas acabou por aceitar.
No momento em que dedica o tema "Song for Che" aos movimentos de libertação negros de Angola e Moçambique, conquista a plateia, que ergue punhos e explode em palavras de ordem, acordando os agentes da PIDE que logo o encaminham para uma cadeia rasca de onde é deportado logo de seguida. Tudo porque não sabia que "não devia misturar música com política"...


sexta-feira, 11 de julho de 2014

"Looking for Rio", de Emmanuel Besnard e Gilles Perez *




* Uma breve história sobre os quatro principais clubes do Rio de Janeiro.
Apresentado por um soberbo Cantona, ali se recorda o nascimento dos clubes da zona nobre do Rio, o Clube de Regatas do Flamengo e o Fluminense, o clube da intelectualidade que um dia pôs em campo um negro coberto de pó-de-arroz, em contraste com
os mais democráticos Botafogo e Vasco da Gama, os primeiros a assumirem negros e mulatos nas suas linhas. Ou de como o Vasco, ameaçado de exclusão da competição por não ser proprietário dos terrenos onde jogava, ergueu o São Januário com dinheiro dos emigrantes portugueses e da comunidade local.
Do significado da revolução no Maracanã, que de uma capacidade de 200.000 lugares passou para os actuais 75.000, com bilhetes ultra-caros, e de como acabaram perdendo o lugar de Peão todos os "favelados e descamisados", numa espécie de retorno ao futebol das elites. Romário explica.

E depois disto ainda há os derbys.
Em Portugal passou na Sic Notícias com o título "Lendas do futebol carioca".

quinta-feira, 10 de julho de 2014

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Germanazo

Numa tourada, à espanhola, quando a lide termina, depois de todas as chicuelinas, veronicas e pases de pecho, quando touro e toureiro já deram tudo o que são e se entregaram mortalmente ao outro, há um momento sagrado e que, bem executado, tem a suprema dignidade de honrar os dois. Falo, claro, da estocada final.
E como se traduz no epílogo do que ambos prepararam durante toda a faena, nenhum foge ao seu destino e o que procuram é estar à altura desse momento fatal. E, por isso, é fundamental que seja limpa e saia à primeira, espécie de milagre e redenção.
E tão importante como isto, o toureiro - porque apesar de tudo é quem tem o estoque na mão - tem que saber reconhecer o momento em que é o fim, e resolver acabando. Por respeito. Por pudor. Como que agradecendo.
Não há tempo ou horário. O tempo é do homem e do animal, e acaba quando é preciso que acabe. Tudo o mais é usurpação e qualquer continuação um abuso.

No futebol, o cronómetro não desliga antes de fazer 90 minutos. Às vezes mais. 


segunda-feira, 7 de julho de 2014

domingo, 6 de julho de 2014

The Bad Boys

Quando a década de 80 terminou, acabava com ela uma dinastia bicéfala no mapa da NBA como quase sempre termina tudo o que dura há muito: com uma breve tempestade e dois relâmpagos brutais.
Dominados por duas equipas que dividiam à vez os títulos de campeão - Lakers, na costa Oeste, e Celtics, na costa Leste - os anos 80 haviam de trazer ainda, não sem estrondo, uma equipa forjada a pulso numa cidade industrial, uma cidade de óleo, tijolos e aço e para quem a infância nunca foi fácil. 
Foi assim que, em plena Motown, surgiram os Detroit Pistons. Uma equipa que além de acabar com o showtime de um Magic Johnson e o orgulho na tradição de um Larry Bird, ainda impediu a explosão imediata de Michael Jordan. Tudo em simultâneo ! No fundo, enterrando o velho mundo e abrindo caminho para o que estava para vir. Com pé-de-cabra. Foi a tempestade perfeita.
Se no ataque brilhavam os letais Isaiah Thomas, Joe Dumars, o "assassino silencioso", e John Salley, a "aranha", na defesa contavam com os assenta tijolos Bill Laimbeer, Rick Mahorn e um desperado chamado Dennis Rodman. 
A todos os Pistons responderam da mesma forma: de punhos e dentes cerrados até ao back-to-back dos títulos de 88/89 e 89/90.
The Bad Boys.




Em Lisboa, um miúdo (que até era Lakers) só podia mesmo render-se a estes rebeldes, e lá foi arranjar uma t-shirt e o boné dos Pistons que, 25 anos depois, recuperou num filme de 2 horas que viu pela noite fora. Qualidade ESPN.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Revista de Imprensa: "Volta, Suárez !", por Miguel Esteves Cardoso


«Luis Suárez, o grande futebolista uruguaio, jurou que não voltará a morder ninguém. O italiano mordido, Giorgio Chiellini, que já tinha lamentado o castigo excessivo que a FIFA aplicou, aceitou o quase pedido de desculpa com cavalheirismo e a mesma empática solidariedade que já tinha demonstrado.

Já é a terceira vez que Suárez é apanhado a morder adversários. É injusto dizê-lo, mas se ele não fosse um jogador tão bom seria inadmissível perdoá-lo. Mas como ele não precisa de morder ninguém, é claro que se trata de um problema que ele tem, que o prejudica e envergonha.

Recomenda-se a psicanálise. Mas lembra-nos que Suárez é um ser humano e que todos os seres humanos, nalgumas instâncias das nossas vidas, fazem merda e são fiteiros.

Se Suárez fosse um fura-vidas, não teria arriscado nada pelo Uruguai. Jogaria bem, mas não se melindraria, para voltar limpinho ao Liverpool. Mas não. Suárez deu tudo pelo país dele, incluindo fazer-se expulsar e pondo em perigo a continuação da carreira dele no Liverpool.

Vale-nos que o Liverpool é um clube abençoado pelos fãs que estão, sem dúvida, entre os melhores do mundo. Não irão na conversa bem-pensante e puritana dos robôs decisores que se julgam mil furos acima dos humanos.

A FIFA é que deveria ser impedida, proibida, extinta e recomeçada. As decisões deveriam ser feitas pelos futebolistas que participaram.

"Morde aqui, a ver se eu deixo" é uma grande máxima moral portuguesa. Sobretudo quando não se deixa.»

in 'Público', 2.07.2014


quinta-feira, 3 de julho de 2014

Revista de Imprensa: "Anos de Imaturidade", de Pedro Adão e Silva *



Já eu, perfilhando idêntica cronologia, acabo de fazer 8 anos. 
E foi no México que despertei para a vida, no parto de Diego Armando Maradona.
 
* recortado pelo Rui Hortelão

terça-feira, 1 de julho de 2014

Ushuaia - 10º dia


O Miguel Casalinuovo e Silvana, a sua mulher, vieram buscar-nos às 10h30m no seu jipe. Queria mostrar-nos a ilha toda, insistindo que só se podia conhecer se víssemos como ela respira. E o Miguel era biólogo. De maneira que arrancámos em direcção a Tolhuin, cidade a 100 kms de Ushuaia para Norte.
Ao longo da estrada, pequenos santuários erigidos em honra da "Difunta Correa", onde as pessoas depositam garrafas de água. Segundo a lenda, esta mulher havia sucumbido à sede com um recém nascido nos braços. Quando os encontraram, a Mãe era morta mas o filho estava ainda vivo, chupando-lhe o seio que lhe fornecia as últimas gotas de vida.
No Lago Escondido (que nome maravilhoso para um lago !) o Miguel pôs-nos a observar o voo dos cauquenes e das bandurrias que traziam a primavera nas asas, e trutas enormes que vinham à tona comer insectos.
Daí seguimos para o Lago Fagnano, ou Khami, no seu índio original, o maior de todos os lagos argentinos, com cerca de 150 kms de comprimento. Caminhámos. O Miguel ia-nos chamando a atenção para a fauna: o macá (pato bravo), os cotorres (grandes piriquitos), o guanaco (bicho tipo Lama). Apontava para o "calafate", as orquídeas a despontar e a barba de viejo, uma espécie de líquenes que vive pendurada nas árvores da região.
Almoçámos  na cabana de madeira de Gustavo, outro amigo do Miguel, que os tem como que semeados por toda a ilha.
Já perto da noite, a Silvana convidou-nos para jantar em casa deles. O tempo passou como passa sempre quando gostamos de alguém. Falámos, falámos e falámos até à meia-noite, para mim o verdadeiro significado de partilhar um maté. De futebol, da política, da vida dele e das nossas, dos livros e filmes que nos recomendávamos. Ele nunca tinha lido um Saramago e nós não conhecíamos Galeano, Arlt ou Ernesto Sabato.
Trocámos os e-mails, comprometi-me a mandar-lhe fotografias e despedimo-nos com um abraço eterno.
No dia seguinte regressaríamos a Buenos Aires.